Foucault atribui a gênese de seu livro As palavras e as coisas, a um texto do
escritor argentino Jorge Luis Borges, que menciona a existência de uma certa
“enciclopédia chinesa”, cujo conteúdo apresenta uma incongruente classificação de
animais,
"a) pertencentes ao imperador, b) embalsamados,
c) domesticados, d) leitões, e) sereias, f) fabulosos, g) cães em liberdade, h)
incluídos na presente classificação, i) que se agitam como loucos, j)
inumeráveis, k) desenhados com um pincel muito fino de pêlo de camelo, l) et
cetera, m) que acabam de quebrar a bilha, n) que de longe parecem moscas".
O pensador francês demonstra sua perplexidade
através de um longo riso, posto que a leitura do inaudito escrito, o posicionou
numa distância considerável da familiaridade do pensamento ocidental, assentado
na ordenação lógica, racional e conceitual.
A taxinomia revelada pela enciclopédia chinesa
torna-se ainda mais intrigante por se apresentar em ordem alfabética, dando a
ela ares de verossimilhança, o que coloca o logos do ocidente diante de seu
próprio limite, ou seja, na impossibilidade de pensar tal possibilidade.
Porém, tal irrealização, não se apresenta com força
suficiente para impedir a sanha cartesiana de dar um mínimo de sentido e razão
de ser à ordem apresentada pelo bestiário chinês. Foucault busca, então,
rearranjar a impraticável classificação referida, numa nova ordem, palatável ao
modo de pensar logocêntrico. Em sua nova apresentação, os animais referidos
seriam divididos, basicamente, em reais, aqueles com existência física
observável e tangível (embalsamados, domesticados, leitões, cães em liberdade,
que se agitam como loucos, que acabam de quebrar a bilha), e, fictícios, que só
existiriam no âmbito do imaginário (pertencentes ao imperador, sereias,
fabulosos, inumeráveis, desenhados com um pincel muito fino de pêlo de camelo).
No entanto, uma nova dificuldade se impõe, pois, a
grande questão, não é justapor animais reais e fictícios numa série alfabética,
mas em que espaço se poderia promover este inusitado encontro. Para Foucault,
não há outro topos possível para esta incrível reunião animalesca, senão no
espaço da linguagem, localizada, neste caso, naquela folha em branco que Borges
transcreveu as imagens que dele desejavam irromper.
A possibilidade do riso de Foucault, então, não se
consumou, senão por um alargamento profundo de sua compreensão, a ponto de
abrir poros nas fronteiras de sua racionalidade, para que se ventilassem os
sopros de outros níveis e modos de conhecimento. Neste sentido, inegavelmente,
o pensamento oriental, representado aqui pela improvável enciclopédia chinesa
de Borges, leva larga vantagem em relação ao ocidental, já que está envolvido,
desde a sua fundação, numa atmosfera prenhe da inefável transcendência, e cuja
linguagem escrita, não traduz o som da voz em linhas horizontais, distanciando-se
do infinito, mas se alteia em colunas verticais, os ideogramas, resguardando a
busca de intimidade com os céus.
A impossibilidade do pensamento ocidental,
racionalista e racionalizante, em abarcar interpretativamente os motivadores
daquele absurdo congraçamento bestial, está na tentativa malograda de se pensar
as imagens, em que eles se constituem, abstraindo-se das mesmas, e não as
tomando em sua densidade simbólica. Por este motivo, também se percebe nesta
nossa breve discussão empreendida a partir de Foucault, o menosprezo, por parte
do logocentrismo ocidental, pelo mundo das imagens, pela intensidade equívoca
do âmbito do imaginário, instaurador da exigência de uma fina sintonia
interpretativa para o vislumbre dos inúmeros e mutáveis sentidos de sua
manifestação.
FOUCAULT, Michel. As palavras e as coisas: uma arqueologia das ciências humanas. 6ª ed. [trad. Salma Tannus Muchail]. São Paulo: Martins Fontes, 1992.
FOUCAULT, Michel. As palavras e as coisas: uma arqueologia das ciências humanas. 6ª ed. [trad. Salma Tannus Muchail]. São Paulo: Martins Fontes, 1992.
[imagem: manuthinkerfree.blogspot.com]
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