domingo, 5 de maio de 2013

Ninho



1
É noite, talvez madrugada. O Senhor G está sozinho. Ele não se importa com as horas, nem com o fato de ser início ou fim de noite. O tempo não tem a menor importância para ele neste momento. O cenário pelo qual caminha muito menos. Mas ele caminha numa pequena estrada. Uma estrada de terra margeada, às vezes por denso matagal, às vezes por frondosas árvores, às vezes por rasteiro capim. Mas o Senhor G não vê a flora mutável que circunda a estrada de terra em que caminha com desencontrados passos.
2
É noite, talvez madrugada. Mas como já foi dito, isso não tem a menor importância para o Senhor G. Ele tem uma boa visão da estrada em que caminha a passos lentos, porém determinados, porque esta é uma noite de lua cheia. Uma enorme esfera prateada ilumina aquilo que normalmente abrigaria o mais denso breu. Mas o Senhor G não enxerga a imensidão da lua prateada, seus olhos nem ao menos se voltam para a estrada enquanto horizonte a ser percorrido, eles estão voltados tão somente para o próximo passo que cada um de seus pés com grande esforço palmilhará.
3
O Senhor G caminha triste, muito triste. Há muito que o desespero substituiu o cansaço. A dor prevalece incomensurável, não mais localizada, a princípio, no peito e, depois, no cérebro, como algumas horas antes. Agora, todo o seu corpo-e-alma é uma só dor, latejante, infindável.
4
O Senhor G caminha e sua mente exaurida não excreta um só fiapo de pensamento. Qual um autômato, ele simplesmente avança para o centro da clareira que a lua cheia vai abrindo, conforme seus pés pisam cada novo centímetro da escuridão.
5
A caminhada é longa, sem parada para descanso ou para mitigar a sede. Não há cansaço, pois o que caminha agora não é um homem, mas o seu fantasma, e não há sede, nem como necessidade fisiológica, nem como metáfora do desejo, pois que nenhuma tromba d’água preencheria o imenso vazio escavado no íntimo do Senhor G.
6
Depois de intermináveis três horas e meia, pé-ante-pé, na estrada de chão prateada pela lua cheia, o Senhor G chega ao seu destino. Trata-se de uma casa simples, localizada no centro de um distrito, a alguns quilômetros do município, a partir de onde iniciou sua triste caminhada noturna.
7
Abre a porta, acende a luz fraca provinda de uma lâmpada de 40w e demora-se longamente a olhar aquele ambiente, o humilde lar que divide com a esposa e os três filhos. Mas, neste momento, o Senhor G está sozinho em sua casa. Esposa e filhos ficaram em companhia de sua irmã, a uma distância segura de qualquer interrupção que o plano que ele destinou para si nesta noite possa sofrer.
8
Dirige-se lentamente para o quarto, senta-se na beira da cama, e fica um bom tempo ali, olhando para o nada, quando seus lábios, de forma involuntária, começam a tremer nervosamente. Os dentes em posição de mordida tentam inutilmente contê-los, ora repuxando o lábio inferior, ora o superior. Do fundo de sua garganta começa a soar um estranho grunhido, animalesco em seu ecoo contido e diverso. Sem liberdade de sair pela boca, aquele som gutural vai e volta desde sua garganta para o mais fundo de si mesmo, como a bombear as lágrimas que agora caem de seus olhos em grossos fios de água-e-sal.
9
Neste gesto convulso o Senhor G deixa-se estar até a exaustão. Levanta-se cambaleante, então, e abre a gaveta da velha cômoda, uma das várias doações de uma outra irmã bem casada, como se diz das mulheres que conseguem arranjar um marido bem sucedido financeiramente. Pega seu antigo estojo de aparelhos de injeção. Abre outra gaveta. Escolhe duas ampolas que contêm um líquido amarelo-turvo. Lima o lacre de ambas com uma pequena lixa de unha. Destampa-as, produzindo um suave som de pólvora seca estourando tardiamente. Enfia a agulha da seringa nas ampolas abertas. Enche lentamente o êmbolo da seringa até a última gota do conteúdo cor de urina, perfazendo algo em torno de 10cc. Descansa a seringa por um momento em cima da cômoda. Pega o garrote feito de câmara de ar de pneu de bicicleta e amarra-o no antebraço esquerdo. Procura uma veia saliente. Perfura-a com a agulha da seringa, e vai esvaziando o êmbolo, o mais devagar possível, em sua circulação sanguínea. Após isso, arruma os travesseiros, deita-se da forma mais confortável que o corpo lhe permite e... espera, com os olhos voltados para o teto sem forro de seu quarto. Só nesse momento, com um passageiro sossego alcançado pela exaustão, o Senhor G reorganiza seus pensamentos, e consegue fazer o relembramento dos acontecimentos recentes, embora as imagens que sua memória fornece se manifestem de forma atabalhoada, fugaz, sem uma sequência lógica.
10
Lembra-se da longa e urgente viagem que ele, sua esposa e seu filho mais novo tiveram que fazer para a capital, em busca de um tratamento médico com mais recursos, não disponíveis nem naquele distrito e nem no município mais próximo. Lembra-se de que precisou deixar os outros dois filhos na casa da irmã que morava em outro município, a meio caminho da capital. Lembra-se de que precisou arranjar dinheiro emprestado para a tal viagem e para as despesas hospitalares, e que não sabia como iria devolvê-lo. Lembra-se de que alguns meses antes da tal viagem, o seu filho caçula era um menino saudável, brincava com os irmãos e fazia a alegria dele e de sua esposa. Lembra-se de que, de uma hora para a outra, o menino aquietou-se, não querendo mais brincar, deixando de se alimentar com regularidade, e passando a sentir incômodos no baixo ventre. Lembra-se de que sua esposa chamou sua atenção para a forma avantajada que a barriga do menino ganhava a cada dia. Lembra-se de que ele e a esposa resolveram levar o filho para rezadeiras e benzedeiras, e que elas foram unânimes em afirmar que aquilo era resultado de mau-olhado. Lembra-se de que, como a criança não melhorava, decidiram por levá-lo a um hospital do município mais próximo ao distrito em que moravam. Lembra-se de que, após os exames, constatou-se que o seu filho mais novo estava com uma doença incurável. Lembra-se que ele e a mulher se desesperaram, que correram aos parentes em busca de ajuda, que uns ajudaram e outros não, que precisaram levar a criança para a capital, para que fosse submetida urgentemente a uma intervenção cirúrgica, que assim o fizeram, que passaram longas horas de longos dias ao lado do leito do menino esperando por sua melhora, que uma manhã, após a primeira noite de descanso juntos, depois de meses, quando foram novamente ao hospital ver como o filho estava, a enfermeira lhes comunicou que ele falecera durante a madrugada...
11
As imagens agora foram ficando cada vez mais embaralhadas na mente do Senhor G. Já não conseguia divisar o que era lembrança do que era delírio. Lembrou-se, num átimo de clarividência, de que talvez o líquido amarelo-turvo começara, enfim, a fazer efeito. Lembrou-se ainda que, felizmente, começaria, dentro em pouco, a usufruir das vantagens da voracidade do esquecimento, do alívio do peso existencial proporcionado pela perda da memória. Tal satisfação não demorou muito a chegar, depois desse derradeiro e breve instante de lucidez do Senhor G. De fato, a partir de um impreciso momento, ele começou a esvaziar-se de suas lembranças. Boas ou más, uma a uma, elas foram se esvaindo, qual o inaudível estouro de etéreas e fugazes bolhinhas de sabão. 
12
O Senhor G encontrara, por fim, a paz de que precisava. 

Para Edson Luis, in memoriam.

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