domingo, 19 de maio de 2013

O crime, um artigo de Raskólnikov



Há coisa de dois meses atrás, Ródia Raskólnikov publicou na Palavra Periódica, revista esta que fundiu-se com a Palavra Hebdomadária, um artigo, no mínimo curioso, intitulado O crime.
No referido artigo, afirma o autor, que todos os homens estão divididos em seres ordinários e extraordinários. Os homens ordinários se caracterizam pelo dever à obediência e por não terem o direito de transgredir a lei, uma vez que são o que são, ordinários, portanto, medíocres, vulgares.
Os indivíduos extraordinários, por sua vez, têm o direito de cometer todos os crimes e de violar todas as leis pela única razão de serem o que são, a saber, extraordinários, grandiosos, excessivos.
Raskólnikov, no entanto, esclarece que o direito respeitante aos homens extraordinários, não se constitui no direito legal, mas do direito que estes têm de permitir às suas respectivas consciências saltarem certos obstáculos, impedimentos e óbices morais. Chama a atenção, no entanto, que tal direito somente é exercido por tais homens, quando visam a realização de uma inaudita ideia que, talvez, venha se constituir em benefício de toda a humanidade, conforme o próprio articulista explica: a meu ver, se as descobertas de Kepler e de Newton não ocorreram em consequência de uma série geral de circunstâncias para chegar à humanidade, mensuradas pelo sacrifício de uma, cem ou mesmo mais vidas humanas, suscetível de lhe embargar a carreira, Newton teria o direito, mais do que isso, o dever de suprimi-las, a fim de facultar a difusão de seus descobrimentos ao mundo inteiro.
Raskólnikov fundamenta sua tese em argumentos que, a despeito de serem questionáveis, não deixam se assentar numa retórica assaz convincente. Segundo ele, todos os legisladores e guias da humanidade, a começar dos mais antigos, continuando-se pelos Licurgos, os Solons, os Maomés, os Napolões, etc., todos, até esses últimos, têm sido criminosos porque, promulgando novas leis, violam, por esse motivo, as antigas que até então tinha sido fielmente observadas pela sociedade e transmitidas de geração em geração. E, para não recuarem, mesmo com derramamento de sangue (sempre inocente e às vezes heroicamente derramado em defesa de antigas leis), por menos que tivessem necessidade disso.
Acrescenta Raskólnikov, em seu já polêmico artigo, que, em razão da afirmação anterior, não é de estranhar que a maior parte desses benfeitores e desses guias da humanidade tivessem feito correr torrentes de sangue, amplamente justificadas por sua imprescindíveis ideias em favor da humanidade.
De forma ousada, mesmo o sob o risco de ver-se questionado pelos homens do poder e da lei, e de sofrer algum tipo de sanção por parte destes, Raskólnikov não capitula, e agudiza o seu discurso, ao proclamar que todos, não somente os grandes homens, mas, também, aqueles que se elevam acima da média e são capazes de pronunciar algumas palavras novas, sejam, por sua própria natureza, necessariamente criminosos, em um grau variável. De outra forma, consoante o autor, não é possível escapar à bitola comum da condição humana. Em razão disso, tal estirpe de homens, a composta pelos extraordinários, não podem optar pelo imobilismo, posto que sua natureza assim não lhes permite, e, para o autor, não deveriam mesmo ficar parados, ainda que assim o desejassem.
Para melhor esclarecer a questão da existência de homens ordinários e homens extraordinários, Raskólnikov admite, em primeiro lugar, que toda e qualquer classificação traz consigo, inevitavelmente, algo de arbitrário. No entanto, apesar disso, o articulista russo chama a nossa atenção de que não é para a taxionomia que se deve ficar atento, mas para os princípios que ela resguarda.
Quais sejam, o de que os homens podem ser dividos, em geral, segundo a ordem da própria natureza, em duas categorias: uma inferior (indivíduos ordinários) ou ainda o rebanho cuja única função consiste em produzir seres semelhantes a ele e aos outros, o verdadeiros homens que gozam do dom de fazer ressoar, em seu meio, palavras novas.
Caracterizando melhor cada uma das categorias, Raskónikov conclui, A primeira, quer dizer, o rebanho, é composto de homens conservadores, sensatos, que vivem numa obediência que lhes é cara. Eu acho que fazem bem em obedecer porque é este seu papel na vida e não há nada de humilhante nisso. Na segunda, todos transgridem a lei, destrutores, ou, pelo menos, seres que tentam destruir, segundo seus meios.
Dessa forma, para o autor, estariam justificados os crimes que são e que possam vir a ser cometidos pela segunda categoria de homens, a dos extraordinários, esses homens que reclamam, sob as mais diversas fórmulas, a destruição da ordem estabelecida e proveito de um mundo melhor.
Se assim for necessário, finaliza Raskólnikov, para fazerem triunfar suas ideias, tais homens passam sobre cadáveres, atravessam mares de sangue, porque, dentro deles, a sua consciência permite-lhes fazê-lo em função naturalmente da importância de sua ideia.

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