domingo, 4 de agosto de 2013

Macondo e a peste da insônia



Foi a índia Visitación quem primeiro deu conta da manifestação de mais um evento inaudito que alcançava Macondo, ao ser despertada por um barulho obsessivamente repetido durante a madrugada. Ao buscar investigar de onde tal barulho provinha, viu Rebeca, a estranha menina recém-chegada ao clã dos Buendía, sentada numa cadeira de balanço, com seus pequenos olhos iluminando tristemente a noite. Visitación não teve dúvida, era a peste da insônia que chegava àquele lugar. Ela reconhecia os vestígios daquele mal que se abatia sobre Macondo, pois se tratava de uma maldição que perseguia a ela e a seu irmão Cataure, por tempos e espaços infindos, e da qual, ao que parece, ambos não podiam se esconder.

Ironizando o pânico instaurado por Visitación, José Arcadio Buendía, num tom de pilhéria, disse-lhe: Se a gente não voltar a dormir, melhor. Assim a vida rende mais. No entanto, a índia chamou a atenção do velho patriarca para o fato de que o problema trazido pela peste da insônia não se reduzia à impossibilidade de dormir, até porque, segundo a sua experiência anterior com tal doença, quanto mais não se dormia, mais o incauto insone se sentia disposto no dia seguinte. O problema real estava no fato de que, quanto mais tempo se ficasse sem dormir, mais se desenvolveria outro problema, o de mergulhar nas águas profundas do esquecimento. Nas palavras do narrador, Visitación Queria dizer que quando o doente se acostumava ao seu estado de vigília, começavam a apagar-se da sua memória as lembranças da infância, em seguida o nome e a noção das coisas, e por último, a identidade das pessoas e ainda a consciência do próprio ser.

Após alguns dias sem conseguir dormir, os acometidos pela peste da insônia, já entediados por não terem mais o que fazer para ocupar o seus dias, posto que a incrível disposição física e psicológica que deles se apossara não permitia que ficassem quietos, começaram a sonhar acordados. Nesse estado de alucinada lucidez não só viam as imagens dos seus próprios sonhos, mas também uns viam as imagens sonhadas pelos outros.

Mas o pior ainda estava por vir, pois o esquecimento provocado pela peste da insônia atingia em cheio a relação entre a memória e a linguagem. Aureliano Buendía, um dos insones mais experimentados, foi o primeiro a dar-se conta desse problema, para o qual cuidou imediatamente de apresentar uma alternativa de solução, que, por alguns meses, livrou o povo de Macondo das terríveis evasões da memória.

Seu método consistia numa tarefa simples, nomear com uma plaquinha ou com um pincel cada objeto e coisa que se possuísse: mesa, cadeira, relógio, porta, parede, cama, panela, de modo que, ao olhá-los, estes se lhe figurassem irreconhecíveis, bastava ler a inscrição que os nomeava, para que a memória fosse ativada, restaurando os seus respectivos significados.

O que Aureliano não esperava era que a agudeza da peste da insônia fosse tão longe. Pois, perplexo, logo descobriu que, insuficiente era nomear as coisas e os objetos, já que, passado algum tempo, ele passou a não saber para que tais objetos e coisas serviam. Esse fato obrigou-o a tornar a descrição das plaquinhas mais longas e fastidiosas. Um exemplo extremado dessa situação, foi quando Aureliano, dirigindo-se a uma vaca em seu curral, pendurou um letreiro em seu pescoço, com os seguintes dizeres: Esta é a vaca, tem-se que ordenhá-la todas as manhãs para que produza o leite e o leite é preciso ferver para misturá-lo com o café e fazer café com leite.

Dessa forma, o povo de Macondo passou a ter com a realidade uma relação inconstante e evasiva, pois que as palavras que a traduziam numa cômoda conjugação de a-coisa-para-o-ser e do ser-para-a-coisa estava, por enquanto, interrompida. Mas... o que seria deles, se a peste da insônia por ali permanecesse por um tempo demasiado alongado, agudizando-se num esquecimento cada vez mais irrecuperável, alcançando a condição de eles esquecerem a palavra escrita?



MARQUEZ, Gabriel García. Cem anos de solidão. 40ª ed. [trad. Eliane Zagury]. Rio de Janeiro: Record, 1994.



Imagem: Colin Elliott, Anthony Fehr, Erik Nelson, and Rachel Robertson 

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