Foi
a índia Visitación quem primeiro deu conta da manifestação de mais um evento
inaudito que alcançava Macondo, ao ser despertada por um barulho obsessivamente
repetido durante a madrugada. Ao buscar investigar de onde tal barulho provinha,
viu Rebeca, a estranha menina recém-chegada ao clã dos Buendía, sentada numa
cadeira de balanço, com seus pequenos olhos iluminando tristemente a noite.
Visitación não teve dúvida, era a peste da insônia que chegava àquele lugar. Ela
reconhecia os vestígios daquele mal que se abatia sobre Macondo, pois se
tratava de uma maldição que perseguia a ela e a seu irmão Cataure, por tempos e
espaços infindos, e da qual, ao que parece, ambos não podiam se esconder.
Ironizando
o pânico instaurado por Visitación, José Arcadio Buendía, num tom de pilhéria,
disse-lhe: Se a gente não voltar a
dormir, melhor. Assim a vida rende mais. No entanto, a índia chamou a
atenção do velho patriarca para o fato de que o problema trazido pela peste da
insônia não se reduzia à impossibilidade de dormir, até porque, segundo a sua
experiência anterior com tal doença, quanto mais não se dormia, mais o incauto
insone se sentia disposto no dia seguinte. O problema real estava no fato de
que, quanto mais tempo se ficasse sem dormir, mais se desenvolveria outro
problema, o de mergulhar nas águas profundas do esquecimento. Nas palavras do
narrador, Visitación Queria dizer que
quando o doente se acostumava ao seu estado de vigília, começavam a apagar-se
da sua memória as lembranças da infância, em seguida o nome e a noção das
coisas, e por último, a identidade das pessoas e ainda a consciência do próprio
ser.
Após
alguns dias sem conseguir dormir, os acometidos pela peste da insônia, já entediados
por não terem mais o que fazer para ocupar o seus dias, posto que a incrível
disposição física e psicológica que deles se apossara não permitia que ficassem
quietos, começaram a sonhar acordados. Nesse
estado de alucinada lucidez não só viam as imagens dos seus próprios sonhos,
mas também uns viam as imagens sonhadas pelos outros.
Mas
o pior ainda estava por vir, pois o esquecimento provocado pela peste da insônia
atingia em cheio a relação entre a memória e a linguagem. Aureliano Buendía, um
dos insones mais experimentados, foi o primeiro a dar-se conta desse problema,
para o qual cuidou imediatamente de apresentar uma alternativa de solução, que,
por alguns meses, livrou o povo de Macondo das terríveis evasões da memória.
Seu
método consistia numa tarefa simples, nomear com uma plaquinha ou com um pincel
cada objeto e coisa que se possuísse: mesa,
cadeira, relógio, porta, parede, cama, panela, de modo que, ao olhá-los, estes
se lhe figurassem irreconhecíveis, bastava ler a inscrição que os nomeava, para
que a memória fosse ativada, restaurando os seus respectivos significados.
O
que Aureliano não esperava era que a agudeza da peste da insônia fosse tão
longe. Pois, perplexo, logo descobriu que, insuficiente era nomear as coisas e
os objetos, já que, passado algum tempo, ele passou a não saber para que tais
objetos e coisas serviam. Esse fato obrigou-o a tornar a descrição das
plaquinhas mais longas e fastidiosas. Um exemplo extremado dessa situação, foi
quando Aureliano, dirigindo-se a uma vaca em seu curral, pendurou um letreiro
em seu pescoço, com os seguintes dizeres: Esta
é a vaca, tem-se que ordenhá-la todas as manhãs para que produza o leite e o
leite é preciso ferver para misturá-lo com o café e fazer café com leite.
Dessa
forma, o povo de Macondo passou a ter com a realidade uma relação inconstante e
evasiva, pois que as palavras que a traduziam numa cômoda conjugação de
a-coisa-para-o-ser e do ser-para-a-coisa estava, por enquanto, interrompida.
Mas... o que seria deles, se a peste da insônia por ali permanecesse por um
tempo demasiado alongado, agudizando-se num esquecimento cada vez mais
irrecuperável, alcançando a condição de eles esquecerem a palavra escrita?
MARQUEZ,
Gabriel García. Cem anos de solidão.
40ª ed. [trad. Eliane Zagury]. Rio de Janeiro: Record, 1994.
Imagem: Colin
Elliott, Anthony Fehr, Erik Nelson, and Rachel Robertson
Muito bom :) !
ResponderExcluirvaleu pela visita, Rebeca!
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