não
me lembro exatamente do momento em que comecei a ter medo de entrar em
elevador. lembro-me, porém, de que eu não tinha nenhum problema com isso.
cheguei, por exemplo, a morar por muito tempo num prédio de quinze andares, no qual
eu subia e descia dentro daquele caixote retangular de porta automática, sem ao
menos me dar conta disso! um elevador, portanto, era pra mim, uma geringonça
que simplesmente me fazia subir e descer para/de grandes alturas sem precisar
que eu imprimisse o menor esforço.
porém,
desde certo dia, pois, como eu disse, não me recordo nem do quando nem do
lugar, entrar num elevador passou a ser para mim uma necessidade assustadora.
de uma hora para outra, não consegui mais fazer uso desse tão necessário meio
de transporte, a não ser acompanhado.
daí
para diante, sempre que precisei ter que me haver com as subidas e descidas de
algum edifício, era necessário estabelecer estratégias.
se
o apartamento ou sala a ser alcançada estivesse no limite de até cinco andares,
eu não me importava de ir até lá usando a escada.
se
o percurso implicasse em vencer seis andares ou mais, eu sempre buscava alguém
para me fazer companhia. no entanto, essa não era uma questão fácil de se
resolver, pois nem sempre eu podia contar com a disponibilidade, com a boa
vontade e nem com a paciência de alguém para me ciceronear num passeio tão
ridículo quanto desnecessário.
quando
se tratava de contar com a companhia de alguém da família ou um amigo, eu
engolia a seco e sem o menor problema as exortações para que eu superasse tal
dificuldade, bem como as gozações que acompanhavam tais puxões de orelha.
porém,
quando se tratava de um estranho, eu enfrentava situações extremamente
constrangedoras. em primeiro lugar, antes que eu pedisse o adjutório, era necessário
explicar as razões pelas quais um marmanjo como eu não conseguia entrar num
elevador sozinho. após isso, aguardava ansioso pela concessão do meu possível
acompanhante, para percorrer aquele estranho trajeto, dentro de um equipamento
movido por motor, cabos e roldanas, que nos levaria de um andar para o outro.
todavia,
a coisa mais embaraçosa era, de soslaio, ter de enfrentar o semblante da pessoa
que me acompanhava, que não conseguia disfarçar um sorriso jocoso, acompanhado
da perplexidade em ver um homem como eu, padecendo de um problema tão
injustificado como aquele que me dominava.
pois
bem, em viagem recente a são luís do maranhão, para participar de um evento
acadêmico, eis que me defrontei mais uma vez com o dilema de ser obrigado a
usar um elevador, já que eu fiquei hospedado num hotel.
no
primeiro dia, enfrentei o problema sem maiores dificuldades, pois reencontrei
um amigo a quem expliquei a minha implicância com elevadores, que ele
compreendeu amistosamente, prontificando-se a me ajudar sempre que possível.
no
segundo dia, no entanto, eu precisava descer para tomar café mais cedo, e ficar
pronto para as atividades da manhã. tendo sido acordado pelo alarme do celular,
levantei-me, tomei banho, e, ainda no banheiro, comecei a especular sobre as
estratégias para a minha descida até o restaurante do hotel, que ficava no
térreo.
dessa
vez, eu não podia contar com a companhia do meu amigo, pois, na véspera, ele já
havia me informado que acordaria mais tarde, eliminando, assim, a minha primeira
opção de descida pelo elevador.
a
minha segunda alternativa era descer pela escada, já que o quinto andar no qual
eu me encontrava estava dentro do critério que estabeleci para tal fim. mas
pensei comigo, caramba, descer outra vez de escada! já começando a me sentir
meio humilhado pelo risível da situação. deixei em suspenso, então, essa
possibilidade, para uma condição derradeira.
passei,
desse modo, a engendrar outra saída para o meu dilema. fiquei diante da porta
do elevador esperando a chegada de algum hóspede que acionaria o botão do
térreo, e me daria uma providencial carona. havia também a chance de algum
hóspede estar descendo de um andar acima do que eu estava e, inevitavelmente,
teria que fazer uma parada forçada diante de mim, proporcionando-me o alívio do
qual eu tanto carecia.
passaram-se
quinze minutos de espera e os meus intentos malograram. já bastante incomodado
com o que os vigilantes do hotel estivessem pensando sobre mim, observando,
curiosos, os meus movimentos desde os monitores das câmeras escondidas, resolvi
voltar para o meu apartamento e pensar no que fazer.
não
encontrando nenhuma saída para o meu caso, decidi voltar a me postar outra vez
diante do elevador, já completamente vencido por minha autocomiseração.
aproximou-se de mim, naquele momento, uma camareira empurrando seu carrinho com
material de limpeza. pensei, experimentando o fundo do poço da minha covardia,
em propor a ela que abandonasse
momentaneamente o seu posto e ajudasse um pobre claustrofóbico a atravessar um
túnel insondável, dentro de um apertado caixão, que me levaria à liberdade que
se encontrava a cinco andares abaixo de onde estávamos.
não,
por mais que eu quisesse, não consegui fazer isso. claro que não! seria a minha
aniquilação total como pessoa!
fiquei
ali, pensando, esperando pelo nada. apenas experimentando o amargo sabor da
vitória do meu próprio medo.
e
o tempo passava. aqueles minutos preciosos em que eu tomaria o meu café da
manhã tranquilamente, enquanto aguardaria o motorista que me conduziria até o lugar
onde aconteceria o evento, escoavam rapidamente! e eu continuava sem saber o
que fazer.
de
repente, um pequeno milagre aconteceu. apalpei indiferente a minha mochila e
senti na minha mão direita o alto relevo de um objeto retangular que
identifiquei como sendo um dos livros que eu carregava. foi então que um
estranho pensamento me veio à mente, e se eu descesse de elevador enquanto
lesse um livro? ah ah ah, foi a risada que ouvi dentro de minha cabeça, como
resposta à minha perturbadora pergunta.
mas
aquela pergunta insistiu em sua interrogação fazendo-me experimentar não mais a
galhofa, mas a gravidade de uma surpreendente iluminação. e se eu descesse de
elevador enquanto lesse um livro? senti que não era mais uma pergunta, mas uma
enigmática exortação. dentro de mim algo se agitava, como quando sentimos que o
momento da mudança vai chegar de um momento para o outro.
abri
a mochila e peguei um dos livros que havia comprado no dia anterior, encontros
com grandes autores, de ben naparstek. apertei o botão de chamada do elevador e
fiquei observando sua subida desde o marcador luminoso em vermelho, t, 1, 2, 3,
4... 5. a porta do elevador abriu-se automaticamente diante de mim. sem
titubear, entrei no elevador, apertei o botão do térreo e vi a porta se fechar,
enquanto abria o livro na página em que naparstek escrevera o texto sobre carlos
fuentes, e comecei a ler, Carlos Fuentes, novelista, ensaísta, ex-diplomata e
porta-voz itinerante internacional no méxico, é muitas coisas – entre as quais,
ele concordará com isto, um exorcista. Seus romances imaginam cenários de
pesadelo para repelir perigos iminentes. “Tente agir como feiticeiro: ‘se eu
mencionar isto não acontecerá’”, mas constantemente seus exorcismos se
transformam em profecia.
mal
eu terminara de concluir o parágrafo, fui despertado da leitura pelo plim do
elevador informando que eu acabara de chegar ao andar térreo do hotel.
foi
como se eu estivesse acordado de um sonho bom e que ele, o sonho, tivesse
continuado após o meu despertar. a descida suave, tranquila e serena do
elevador me fez crer que o medo, esse sentimento abstrato, portanto, invisível,
e que por se constituir dessa substância imponderável, não sabemos como
enfrentá-lo, havia sido derrotado pela concretude do objeto-livro, constituído
da matéria da palavra, essa também imponderável substância que traz consigo,
além de outras infinitas possibilidades, a cura.
para
provar que eu havia vencido a claustrofobia, entrei novamente no elevador,
apertei o botão do quinto andar, abri novamente o livro de naparstek e passei a
ler o segundo parágrafo sobre carlos fuentes.
o
café e o motorista que esperassem.
[imagem: mulherplus.blogspot.com]