sábado, 28 de setembro de 2013

A cura quando livro



não me lembro exatamente do momento em que comecei a ter medo de entrar em elevador. lembro-me, porém, de que eu não tinha nenhum problema com isso. cheguei, por exemplo, a morar por muito tempo num prédio de quinze andares, no qual eu subia e descia dentro daquele caixote retangular de porta automática, sem ao menos me dar conta disso! um elevador, portanto, era pra mim, uma geringonça que simplesmente me fazia subir e descer para/de grandes alturas sem precisar que eu imprimisse o menor esforço.
porém, desde certo dia, pois, como eu disse, não me recordo nem do quando nem do lugar, entrar num elevador passou a ser para mim uma necessidade assustadora. de uma hora para outra, não consegui mais fazer uso desse tão necessário meio de transporte, a não ser acompanhado.
daí para diante, sempre que precisei ter que me haver com as subidas e descidas de algum edifício, era necessário estabelecer estratégias.
se o apartamento ou sala a ser alcançada estivesse no limite de até cinco andares, eu não me importava de ir até lá usando a escada.
se o percurso implicasse em vencer seis andares ou mais, eu sempre buscava alguém para me fazer companhia. no entanto, essa não era uma questão fácil de se resolver, pois nem sempre eu podia contar com a disponibilidade, com a boa vontade e nem com a paciência de alguém para me ciceronear num passeio tão ridículo quanto desnecessário.
quando se tratava de contar com a companhia de alguém da família ou um amigo, eu engolia a seco e sem o menor problema as exortações para que eu superasse tal dificuldade, bem como as gozações que acompanhavam tais puxões de orelha.
porém, quando se tratava de um estranho, eu enfrentava situações extremamente constrangedoras. em primeiro lugar, antes que eu pedisse o adjutório, era necessário explicar as razões pelas quais um marmanjo como eu não conseguia entrar num elevador sozinho. após isso, aguardava ansioso pela concessão do meu possível acompanhante, para percorrer aquele estranho trajeto, dentro de um equipamento movido por motor, cabos e roldanas, que nos levaria de um andar para o outro.
todavia, a coisa mais embaraçosa era, de soslaio, ter de enfrentar o semblante da pessoa que me acompanhava, que não conseguia disfarçar um sorriso jocoso, acompanhado da perplexidade em ver um homem como eu, padecendo de um problema tão injustificado como aquele que me dominava.
pois bem, em viagem recente a são luís do maranhão, para participar de um evento acadêmico, eis que me defrontei mais uma vez com o dilema de ser obrigado a usar um elevador, já que eu fiquei hospedado num hotel.
no primeiro dia, enfrentei o problema sem maiores dificuldades, pois reencontrei um amigo a quem expliquei a minha implicância com elevadores, que ele compreendeu amistosamente, prontificando-se a me ajudar sempre que possível.
no segundo dia, no entanto, eu precisava descer para tomar café mais cedo, e ficar pronto para as atividades da manhã. tendo sido acordado pelo alarme do celular, levantei-me, tomei banho, e, ainda no banheiro, comecei a especular sobre as estratégias para a minha descida até o restaurante do hotel, que ficava no térreo.
dessa vez, eu não podia contar com a companhia do meu amigo, pois, na véspera, ele já havia me informado que acordaria mais tarde, eliminando, assim, a minha primeira opção de descida pelo elevador.
a minha segunda alternativa era descer pela escada, já que o quinto andar no qual eu me encontrava estava dentro do critério que estabeleci para tal fim. mas pensei comigo, caramba, descer outra vez de escada! já começando a me sentir meio humilhado pelo risível da situação. deixei em suspenso, então, essa possibilidade, para uma condição derradeira.
passei, desse modo, a engendrar outra saída para o meu dilema. fiquei diante da porta do elevador esperando a chegada de algum hóspede que acionaria o botão do térreo, e me daria uma providencial carona. havia também a chance de algum hóspede estar descendo de um andar acima do que eu estava e, inevitavelmente, teria que fazer uma parada forçada diante de mim, proporcionando-me o alívio do qual eu tanto carecia.
passaram-se quinze minutos de espera e os meus intentos malograram. já bastante incomodado com o que os vigilantes do hotel estivessem pensando sobre mim, observando, curiosos, os meus movimentos desde os monitores das câmeras escondidas, resolvi voltar para o meu apartamento e pensar no que fazer.
não encontrando nenhuma saída para o meu caso, decidi voltar a me postar outra vez diante do elevador, já completamente vencido por minha autocomiseração. aproximou-se de mim, naquele momento, uma camareira empurrando seu carrinho com material de limpeza. pensei, experimentando o fundo do poço da minha covardia, em propor  a ela que abandonasse momentaneamente o seu posto e ajudasse um pobre claustrofóbico a atravessar um túnel insondável, dentro de um apertado caixão, que me levaria à liberdade que se encontrava a cinco andares abaixo de onde estávamos.
não, por mais que eu quisesse, não consegui fazer isso. claro que não! seria a minha aniquilação total como pessoa!
fiquei ali, pensando, esperando pelo nada. apenas experimentando o amargo sabor da vitória do meu próprio medo.
e o tempo passava. aqueles minutos preciosos em que eu tomaria o meu café da manhã tranquilamente, enquanto aguardaria o motorista que me conduziria até o lugar onde aconteceria o evento, escoavam rapidamente! e eu continuava sem saber o que fazer.
de repente, um pequeno milagre aconteceu. apalpei indiferente a minha mochila e senti na minha mão direita o alto relevo de um objeto retangular que identifiquei como sendo um dos livros que eu carregava. foi então que um estranho pensamento me veio à mente, e se eu descesse de elevador enquanto lesse um livro? ah ah ah, foi a risada que ouvi dentro de minha cabeça, como resposta à minha perturbadora pergunta.
mas aquela pergunta insistiu em sua interrogação fazendo-me experimentar não mais a galhofa, mas a gravidade de uma surpreendente iluminação. e se eu descesse de elevador enquanto lesse um livro? senti que não era mais uma pergunta, mas uma enigmática exortação. dentro de mim algo se agitava, como quando sentimos que o momento da mudança vai chegar de um momento para o outro.
abri a mochila e peguei um dos livros que havia comprado no dia anterior, encontros com grandes autores, de ben naparstek. apertei o botão de chamada do elevador e fiquei observando sua subida desde o marcador luminoso em vermelho, t, 1, 2, 3, 4... 5. a porta do elevador abriu-se automaticamente diante de mim. sem titubear, entrei no elevador, apertei o botão do térreo e vi a porta se fechar, enquanto abria o livro na página em que naparstek escrevera o texto sobre carlos fuentes, e comecei a ler, Carlos Fuentes, novelista, ensaísta, ex-diplomata e porta-voz itinerante internacional no méxico, é muitas coisas – entre as quais, ele concordará com isto, um exorcista. Seus romances imaginam cenários de pesadelo para repelir perigos iminentes. “Tente agir como feiticeiro: ‘se eu mencionar isto não acontecerá’”, mas constantemente seus exorcismos se transformam em profecia.
mal eu terminara de concluir o parágrafo, fui despertado da leitura pelo plim do elevador informando que eu acabara de chegar ao andar térreo do hotel.
foi como se eu estivesse acordado de um sonho bom e que ele, o sonho, tivesse continuado após o meu despertar. a descida suave, tranquila e serena do elevador me fez crer que o medo, esse sentimento abstrato, portanto, invisível, e que por se constituir dessa substância imponderável, não sabemos como enfrentá-lo, havia sido derrotado pela concretude do objeto-livro, constituído da matéria da palavra, essa também imponderável substância que traz consigo, além de outras infinitas possibilidades, a cura.
para provar que eu havia vencido a claustrofobia, entrei novamente no elevador, apertei o botão do quinto andar, abri novamente o livro de naparstek e passei a ler o segundo parágrafo sobre carlos fuentes.
o café e o motorista que esperassem.

sábado, 21 de setembro de 2013

Ficções, Jorge Luis Borges



Obra demiúrgica. Leitura imprescindível para qualquer leitor que anseia em conhecer mais acerca da traição permanente da linguagem literária, da incapturabilidade absoluta dos sentidos, de como as tramas das narrativas podem ser mais intrincadas e enredadas que o “safado comum” do “sarrafaçar” da vida cotidiana.
É uma obra dividida em duas partes: “O jardim de caminhos que se bifurcam” e “Artifícios”, que, somadas, apresentam 17 contos com pendor ensaístico, cuja inventividade ilude leitores noviços e malhados.
O que implica o não conformar-se com uma única leitura, pois a obra deve ser lida e relida até que as páginas estejam amarelecidas, para serem novamente reabertas e mais uma vez lidas.
No prólogo de O jardim, Borges revela:
Desvario laborioso e empobrecedor o de compor vastos livros; o de explanar em quinhentas páginas uma idéia cuja exposição oral cabe em poucos minutos. Melhor procedimento é simular que estes livros existem e apresentar um resumo, um comentário. Assim procedeu Carlyle em Sartor Resartus; assim Butler em The Fair Haven, obras que têm a imperfeição de serem também livros, não menos tautológicos que os outros. Mais razoável, inepto, ocioso, preferi a escrita de notas sobre livros imaginários.
(Trad. de Carlos Nejar) (Globo)

sexta-feira, 20 de setembro de 2013

Concerto barroco, Alejo Carpentier



No início do século XVIII, um milionário da prata mexicana, neto de conquistadores maltrapilhos e aristocratas, há uma geração apenas, deixa a terra natal para uma temporada de luxos e prazeres em Veneza.
Chegando à cidade em pleno Carnaval, o Amo e seu criado Filomeno são protagonistas de um concerto sem precedentes, que reúne os maiores prodígios da Europa barroca, mas também a música do Velho e do Novo Mundo.
O escritor cubano, numa narrativa que ele chama de síntese de sua prodigiosa obra, nos brinda com uma novela com um desfecho apoteótico:
“Mas agora todos explodiam, acompanhando o trombone de Louis Armstrong, num enérgico strike-up de deslumbrantes variações sobre o tema de ‘I can’t give you anything but love, baby’ – novo concerto barroco ao qual, por inesperado portento, vieram confundir-se, caídas de uma clarabóia, as horas dadas pelos mouros da Torre do Orologio” (p. 83).
(Trad. Josely Vianna Baptista) (Companhia das Letras)

quinta-feira, 19 de setembro de 2013

O caderno vermelho, Paul Auster



São brevíssimas histórias, dispostas ao longo de quatro curtos capítulos, que têm no absurdo e na imponderabilidade do acaso o cerne temático.
O subtítulo de O caderno vermelho é “Histórias reais”. Para quem já está malhado pela narrativa borgiana, fica difícil crer que sorte, azar, coincidência, possam não compor a matéria de predileção do arranjo ficcional.
Mas Auster insiste: “Isso realmente aconteceu. Como tudo o mais que escrevi neste caderno vermelho, é uma história verídica” (p. 48).
(Trad. Rubens Figueiredo) (Companhia das Letras)