Maurice Blanchot, em A parte do fogo, declara: “Kafka quis destruir sua obra, talvez
porque esta lhe parecesse condenada a aumentar o mal-entendido universal” (p.
9). Parodiando às avessas, declaro: “Beckett nunca quis destruir sua obra,
certamente por que esta lhe pareceu condenada a aumentar o mal-entendido
universal”.
Esperando
Godot, embora hoje bem menos que
quando de seu lançamento, em razão das idas e vindas de possibilidades
interpretativas sobre ele realizadas desde então, é o exercício do absurdo e da
incongruência em sua plenitude. Mas nem essa afirmação com ares de um
definitivo intelectualismo é justa com a condição humana espremida desde as
páginas da espera, tanto longa quanto inútil, de Vladimir e Estragon, de Pozzo
e Lucky.
Por quê? Porque pensar na condição humana desde uma
equação simplificada em que 2 + 2 é = a 4, é que são os autênticos absurdo e
incongruência. A leitura e a releitura de Esperando
Godot, com sua ausência de enredo, com sua inapetência para a ação, com seu
lacônico epílogo sem uma indicação teleológica, nos remete, inevitavelmente, ao
nonsense que, em última instância, se
constitui a nossa existência, depois de experimentados todos os lenitivos e
mitigações para que não pensemos friamente sobre nossa humana condição. Quando
tal pensamento é experienciado, o que nos resta, a partir de então, é a agonia
de uma longa (e inútil?) espera.
“VLADIMIR
Não percamos tempo com palavras vazias. (Pausa. Com veemência) Façamos alguma
coisa, enquanto há chance! Não é todo dia que precisam de nós. Ainda que, a bem
da verdade, não seja exatamente de nós. Outros dariam conta do recado, tão bem
quanto, senão melhor. O apelo que ouvimos se dirige antes a toda humanidade.
Mas neste lugar, neste momento, a humanidade toda somos nós, queiramos ou não. Aproveitemos
enquanto é tempo. Representar dignamente, uma única vez que seja, a espécie a
que estamos desgraçadamente atados pelo destino cruel. O que me diz? (Estragon não fala nada) Claro que,
avaliando os prós e contras, de cabeça fria, não chegamos a desmerecer a
espécie. Veja o tigre, que se precipita em socorro de seus congêneres, sem a
menor hesitação. Ou foge, salva sua pele, embrenhando-se no meio da mata. Mas não
é esse o xis da questão. O que estamos fazendo aqui, essa é a questão. Foi-nos
dada uma oportunidade de descobrir. Sim, desta imensa confusão, apenas uma
coisa está clara: estamos esperando que Godot venha” (p. 160).
(Trad. Fábio de Souza Andrade) (Cosac Naify)
Nenhum comentário:
Postar um comentário