domingo, 15 de setembro de 2013

O lobo da estepe, Hermann Hesse




No posfácio dessa obra, Hesse faz uma tentativa, inglória, diga-se de passagem, de tentar fazer valer qual era a sua intenção ao escrevê-la.
Em outras palavras, tenta dizer, mas não o faz (e nem poderia, ainda que o quisesse), como gostaria que o leitor se apropriasse do profundo sentido que a obra narrativa de O lobo resguarda. Lembro-me de uma frase declarada de forma resignada (porém, definitiva) por Guimarães Rosa numa conversa entretida com Günther Lorenz, “em arte, não vale a intenção”.
Paul Ricoeur, desde o inevitável conflito entre as hermenêuticas, nos fala da irrecuperabilidade da intenção do autor na leitura e na interpretação de um texto, dada a autonomia de sentido do discurso lançado ao mundo.
Hesse sentiu necessidade, então, de escrever tal posfácio em razão de O lobo ter sido sua obra mais “violentamente incompreendida”.  
No recenseamento possível realizado por Hesse, para buscar compreender os motivos de tal incompreensão de sua obra, ele parte da seguinte premissa: “o curioso é que, em geral, a incompreensão parte de leitores entusiastas e satisfeitos com o livro do que os leitores que o rejeitaram”.
Curioso paradoxo: os que o amam, não o compreenderam; os que o odeiam, se aproximaram de sua verdade. Vemos desveladas as várias personalidades d´O lobo, não desde sua própria avaliação, mas da alheia (meu Deus!, Hesse terá me iludido? O posfácio compõe a obra, assim como o prefácio?).
“Em parte, mas só em parte, isso [a incompreensão, não esqueçamos] pode ocorrer com tal freqüência em razão de este livro, escrito quando eu tinha 50 anos e tratando, como trata, de problemas peculiares a essa idade, cair não raro em mãos de leitores muito jovens”. Vale a pena comentar essa escorregadela de Hesse? Tenho 48, a 3 dos meus 50 (meu Deus!), e, no entanto... Não, não vale a pena comentar.
Vamos à próxima. “Mas, entre leitores da minha própria idade, também tenho encontrado com frequência alguns que – embora bem impressionados com o livro – só percebem estranhamente apenas parte do que pretendi”.
Hesse deveria ter ficado muito feliz em ter encontrado entre os muitos que o leram, dos seus contemporâneos, alguns que perceberam parte do que ele pretendeu. O imperdoável é o “estranhamente”, como se fosse possível perceber tudo que o autor pretendeu. Melhor, às favas com que o autor pretendeu!
A parte que eles perceberam, segundo Hesse, foi a que trata “de problemas peculiares a essa idade [a dos cinqüentões, da qual me aproximo com mau humor e lepidez incríveis]”, pois “reconheceram-se no Lobo da Estepe, identificaram-se com ele, sofreram suas dores e sonharam seus sonhos”.
Mas, afinal, o que Hesse queria dizer (sic) ao escrever O lobo, e creu que apenas aqueles o rejeitaram o compreenderam em parte? “este livro fala e trata de outras coisas, além de Harry Haller” (O narrador-personagem. Note-se a aliteração entre Harry Haller e Hermann Hesse. Mas deixo esse dado para a análise dos psicanalistas de plantão), “fala a propósito de um outro mundo, mais elevado e indestrutível, muito acima daquele em que transcorre a problemática  vida de meu personagem”.
Eis aí, portanto, o que Hesse acreditou que só alguns poucos compreenderam: o plasmar narrativo de sua metafísica. “O livro trata, sem dúvida alguma, de sofrimentos e necessidades, mas mesmo assim não é o livro de um homem em desespero, mas o de um homem que crê”.
De minha parte, não tive dificuldade em compreender isso na leitura de O lobo, pois que também pertenço, embora de forma escorregadia, a essa laia. A dos que buscam traçar determinada metafísica no plano tortuoso da narrativa.
Recordo aqui Guimarães Rosa, outro escritor dessa mesma linhagem, em outra declaração a Lorenz, em que ressalta a presença de tal dimensão em sua obra, a partir de uma curiosa escala valorativa:
“a) cenário e realidade sertaneja: 1 ponto; b) enredo: 2 pontos; c) poesia: 3 pontos; d) valor metafísico-religioso: 4 pontos”.  
 Por fim, leia-se com terno esforço, esse derradeiro pedido de Hesse: “eu me sentiria contente se alguns desses leitores pudessem perceber que a história do Lobo da Estepe, embora relate enfermidade e crise, não conduz à destruição e à morte, mas, ao contrário, à redenção”.
(Trad. Ivo Barroso)

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