William Faulkner, em Escritores em ação (Paz e Terra),
declara “Talvez todo romancista deseja escrever antes poesia, verifique que não
é capaz, e tente, então, o conto, que é a forma literária literária que mais
exige, depois da poesia. E, malogrando nisso, somente então se dedique a
romances” (p. 38).
Tomando essa
digressão em sentido inverso, não há dúvida: Baudelaire nos privou do grande
romancista que nele habitava. É o que prova, de forma inconteste, Pequenos poemas em prosa. São 50 breves
textos que poderíamos chamar de “contos poéticos”. Em cada um deles, Baudelaire
mantém incólumes sua perversa ironia e sua suspeita metafísica, pendulando
entre um controlado romantismo e um simbolismo arrepiante.
O QUARTO DUPLO
Um
quarto que parece um devaneio, um quarto verdadeiramente espiritual onde a atmosfera estagnante é ligeiramente tingida de
rosa e azul.
A
alma toma um banho de preguiça, aromatizada pelos pesares e pelo desejo. É algo
de crepuscular, de azulado e de rosado; um sonho de volúpia durante um eclipse.
Os
móveis têm as formas alongadas, prostradas, lânguidas. Os móveis têm o ar de
que sonham; diríamos dotados de uma vida sonambúlica como um vegetal ou um
mineral. Os tecidos falam uma língua muda como as flores, como os céus, como os
sóis poentes.
Nas
paredes nenhuma abominação artística. Relativamente ao puro sonho, à impressão
não analisada, a arte definida, a arte positiva é uma blasfêmia. Aqui tudo tem
suficiente clareza e a deliciosa obscuridade da harmonia.
Um
aroma infinitesimal da mais original escolha, ao qual se mistura uma levíssima
umidade, flutua nessa atmosfera, onde o espírito sonolento é embalado por uma
sensação de estufas aquecidas.
A
musselina chora abundantemente diante das janelas e diante do leito; ela se
derrama em cascatas de neve. Sobre esse leito está deitado o Ídolo, a soberana
dos sonhos. Mas como ela está aqui? Quem a trouxe? Que poder mágico instalou-se
nesse trono de devaneios e volúpia? Que importa! Ei-la! Eu a reconheço.
São
esses olhos cuja flama atravessa o crepúsculo; esses sutis e terríveis olhares que eu reconheço em sua
assustadora malícia! Eles atraem, eles subjugam, eles devoram o olhar
imprudente que os contempla. Já estudei muitas vezes essas estrelas negras que
comandam a curiosidade e a admiração.
Por
qual demônio benevolente devo eu ter sido envolvido de mistério, de silêncio,
de paz e de perfumes? Ó beatitude! Isso que nós chamamos geralmente de vida,
mesmo em sua expansão mais feliz, nada tem de comum com essa vida suprema que,
agora, eu conheço e saboreio a minuto, segundo a segundo.
Não!
Não há mais minutos, não há mais segundos! O tempo desapareceu; é a Eternidade
que reina, uma eternidade de delícias.
Mas
um pancada terrível, fortíssima, ressoou na porta e, como nos sonhos infernais,
pareceu-me que recebia um golpe de uma enxada no estômago.
E
depois um Espectro entrou. É um oficial de justiça que vem me torturar, em nome
da lei; uma infame concubina que vem exibir sua miséria e juntar as
trivialidades de sua vida às dores da minha; ou então um jovem secretário de
diretor de jornal que vem reclamar a entrega de um manuscrito.
O
quarto paradisíaco, o Ídolo, a soberana dos sonhos, a Sílfide, como dizia René, toda aquela magia desapareceu com o golpe
disparado pelo Espectro.
Horror!
Eu me lembro! Eu me lembro! Sim! Este chiqueiro, este ambiente de eterno
desgosto está bem dentro de mim. Vejam os móveis burros, empoeirados, capengas,
a lareira sem chamas e sem brasas, suja de escarros, as tristes janelas onde a
chuva traçou seus sulcos na poeira; os manuscritos rasurados ou incompletos; o
almanaque onde o lápis marcou as datas sinistras!
E
esse perfume de um outro mundo, com o qual eu me embriagava com uma
sensibilidade aperfeiçoada, ei-lo substituído por fétido odor de tabaco
misturado a um mofo nauseabundo. Respira-se aqui, agora, o ranço da desolação.
Nesse
mundo estreito, mas tão repleto de desgostos, um único objeto conhecido me
sorri; a garrafinha de láudano; uma velha e terrível amiga, como todas as
outras. Oh! fecundas em carinho e traições.
Oh!
Sim, o Tempo reapareceu, o Tempo reina soberano agora; e com o horroroso velho
voltou todo o demoníaco cortejo de Lembranças, de Arrependimentos, de Espamos,
de Medos, de Angústias, de Pesadelos, de Cóleras e de Neuroses.
Eu
vos asseguro que os segundos agora são fortemente e solenemente acentuados e
cada um saltando do pêndulo diz: “Eu sou a Vida, a insuportável, a implacável
Vida.”
Só
há um Segundo na vida humana com a missão de anunciar uma boa nova, a boa nova que causa em cada um de nós um
medo inexplicável.
Sim!
O Tempo reina, ele retomou sua brutal ditadura. Ele me empurra, como se fosse
um boi, com seu duplo aguilhão. “Eia! Vamos, então, burrico! Sua então,
escravo! Vive, então, condenado!” (p. 31-37).
(Trad. Gilson Maurity)
(Record)
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