sábado, 27 de julho de 2013

Ismael e a apologia do mar



Logo no início de Moby Dick, Ismael revela-nos a sua misteriosa relação com o mar. O relacionamento do protagonista com o reino de Netuno é anímico, a ponto de ele ter de submeter-se, de tempos em tempos, aos benefícios psico-fisiológicos que tal encontro lhe proporciona. É a minha maneira de dispersar o spleen e de regular a circulação, diz-nos o herói de Melville.
Assim, sempre que Ismael é acometido de amargura e angústia pelo fato de ficar por longo período convivendo com as mazelas a que estão expostos ele e seus pares em terra firme, julga que é hora de enfunar as velas e lançar-se às vagas intermitentes e inconstantes que o mar oferece.
Mas que sentimentos inspiram Ismael a esse arrebatamento aventureiro pelo abissal oceano?
É do alto de uma torre de marfim, onde habitam corajosos navegadores, ao lado de quem ele também julga estar, é que Ismael brada seu elogio do mar. Distinguindo-se dos demais habitantes da cidade que, embora admirem a imensidão, ora azul, ora verde das águas do oceano, não ousam nelas navegar, o protagonista da obra maior do escritor norte-americano, provoca-os desde sua variável coragem, Plantados como sentinelas silenciosas por toda a cidade, milhares e milhares de mortais permanecem imóveis, perdidos em meditações sobre o mar.
Ismael avalia que pessoas como essas, as que vivem na terra e só conseguem apreciar a grandeza e a beleza do mar a distância, estão aprisionadas ao sarrafaçar da existência, a uma realidade demasiado chã, que lhes impede de vivenciar a vida em seu sentido mais profundo, a saber, o da incerteza e da insegurança com as quais a terceira margem das águas inquieta e seduz. São todos homens da terra, durante a semana encerrados entre sarrafos e argamassa; amarrados a balcões, presos em bancos, enganchados em escritórios. Como se explica isso? Desapareceram os verdes prados? Que faz aqui essa gente? Assim se pergunta perplexo, o narrador-personagem de Moby Dick.
O que incomoda o herói melvilliano é que tais pessoas, por mais que se sintam atraídas pelo mar, a ele não se lançam, ficando sempre na margem da possibilidade de enfrentá-lo, pois, para elas, a fronteira entre a terra e a água não é um portal, mas uma muralha transparente. O desejo de transpô-la limita-se apenas a por os pés na parte aquosa e salgada da terra, para logo após de lá retirá-los e palmilhar em solo firme, caminhando em direção a um porto seguro. Aí vêm mais multidões, dirigindo-se para a água e aparentemente procurando a oportunidade de um mergulho! Estranho! Nada os satisfaria tanto como lançar-se ao extremo limite da terra. Vagar a sombra dos armazéns vizinhos do porto não é bastante. Precisam aproximar-se da água o mais possível sem cair nela.
Ismael avalia que, embora as pessoas da cidade não saibam, o sentimento delas adivinha, o temor do mar, que esbate com o desejo de desbravá-lo, tem a ver com o mistério e o perigo que nele estão consubstanciados, pois navegá-lo implica, necessariamente, nele perder-se, nele, desde o encontro do mastro com o horizonte, reconhecer-se como dissoluto, Por que motivo na vossa primeira viagem por mar sentistes essa mística vibração, quando vos disseram que tanto o navio como vós já vos acháveis fora do alcance da vista?
Eis o background que se desvela da relação de Ismael com o mar, a partir da qual justifica os benefícios psico-fisiológicos que ele usufrui, o plano metafísico, Por que é que os antigos persas consideravam o mar como sagrado? Por que razão lhe atribuíram os gregos um deus especial, o próprio irmão de Júpiter? Seguramente, tudo isso tem um sentido.
Mais que um sentido, Ismael, numa afirmação mais contundente, dirá que no mar está está a chave que abre todos os mistérios do mundo, pois, navegando-o, podemos dar com  a imagem do inacessível fantasma da vida. Para a possibilidade de aceder a tal encontro, segundo Ismael, é necessário abrir mão da inútil segurança de se lançar ao mar na cômoda e passiva condição de passageiro. Para ele, é necessário atirar-se ao desbravamento do mar, desde a ativa e incômoda condição de marinheiro. 

MELVILLE, Herman. Moby Dick. [Trad. Berenice Xavier]. São Paulo: Publifolha, 1998. 
 [imagem: www.thepinksmoke.com]

segunda-feira, 22 de julho de 2013

Ronald Augusto à queima-roupa



Lancei o meu primeiro romance Le mot juste (Orobó Edições) em 2011.

Enviei exemplares do livro para algumas pessoas do métier, para que escrevessem uma breve resenha sobre a obra. Uma delas foi Régis Bonvicino, que me indicou uma outra para o trabalho, o, hoje, grande camarada, Ronald Augusto.

Pouco tempo após o envio do miolo do livro via e-mail, eis que o Ronald já retorna com uma instigante e provocadora resenha, “A multiplicação de textos de Le mot juste”, publicada posteriormente em seu excelente Decupagens assim (Letras Contemporâneas, 2012).

Desde então, temos mantido um excelente diálogo literário.

Ronald é poeta, crítico, compositor e cantor, daqueles que não douram a pílula, que não capitulam diante da torrente formada pela opinião geral sobre assuntos literários e afins.

Veja-se, por exemplo, a sua iconoclastia acerca de como vê a questão das premiações e dos concursos literários, Premiações e concursos literários com o aval e o suporte financeiro de grandes empresas capazes de desempenhar as tarefas estupidificantes que o conivente sistema literário exige deles. O que permanece informe no espírito dos escritores acerca deste estado de coisas é produto da forma por meio da qual se estruturam os embates e acordos socioculturais.

Enviei-lhe, então, algumas questõezinhas que, embora, recorrentes, nunca perdem seu pendor capcioso quando lançadas à queima-roupa. Veja-se o que o Ronaldo disse sobre cada uma delas.

Erre: Ronald, que aspectos você julga que devam ser considerados sobre o ato de ler?

Ronald: Duas coisas sobre essa questão: (1) ler é mais importante do que escrever; e (2) reler, do ponto de vista do escritor, é mais importante do que ler. Borges é o grande exemplo dessa meia tese, isso porque o dom da cegueira progressiva contribuiu para que ele se dedicasse mais à releitura, espécie de rememoração, do que à leitura (que supõe o agora e o cumulativo). Se o prazer da leitura se extinguirá, melhor reter na memória imaginativa, por via da releitura, o que foi feito de melhor.

Erre: E, por sua vez, o que você tem a dizer sobre o ato de escrever?

Ronald: Subproduto da releitura. Repetir os mestres para aprender.

Erre: Agora, uma questão mais complexa, o que significa, para você, ser lido?

Ronald: Efetivar esse singular ato da comunicação poética. Reconhecer a vontade ou o desejo de linguagem do leitor. Admitir que as interpretações resultantes desse desejo são infinitamente mais importantes do que as que o escritor talvez tenha idealizado para o seu  próprio texto. 

Erre: Vamos complicar mais o negócio, fale um pouco sobre um de seus principais ofícios com a escrita, o da crítica, o que é isso?

Ronald: Fazer inimigos. Dar prosseguimento à tradição, mas de maneira a colaborar com sua renovação.

Erre: E, por fim, como funciona o lance de ser criticado?

Ronald: É como ser lido, a mesma coisa; trata-se de um modo mais focado de ler. Mas, no sentido de receber uma crítica desfavorável, devo dizer que ainda não sei o que significa isto. Não estou sendo arrogante. Até agora, quando alguém me critica, isso tem a ver com minha atividade crítica; os autores reagem defensivamente e com certa revolta, como se eu fosse um traidor da irmandade. Fazer crítica apontando problemas se limita, hoje em dia, com o gesto reativo do sujeito que ficou com o orgulho ferido. Esse escritor medíocre faz beicinho e sai da sala para chamar a atenção.



Ronald Augusto. Poeta, músico, e crítico de poesia. É autor de, entre outros, Homem ao Rubro (1983), Puya (1987), Kânhamo (1987), Vá de Valha (1992),Confissões Aplicadas (2004), No Assoalho Duro (2007), Cair de Costas (2012), Decupagens Assim (2012) e Oliveira Silveira: Poesia Reunida (2012). Despacha no blog www.poesia-pau.blogspot.com e é diretor-associado do website www.sibila.com.br





domingo, 21 de julho de 2013

Wesley Peres à queima-roupa



ler?  É muito mais importante, pra mim, do que escrever. Como diz o Borges, a gente lê o que tem vontade, mas só escrevemos o que damos conta.

escrever? Escrevo porque vou morrer. Se nós, humanos, fôssemos imortais, eu não escreveria. Não que eu espere alguma reparação com minha escrita. Não que eu espere algum tipo de superação da morte com a escrita, ou consolo. Apenas que, o fato de ter a morte me espiando de algum ponto no tempo, me faz escrever. Escrevo por isso. Não faz muito sentido, mas é assim comigo.

 ser lido? Já se disse por aí que o que não foi lido não foi escrito. Prefiro ter leitores, mas se não os tiver, escrevo do mesmo jeito.

criticar? Fiz mestrado em letras e foi uma ótima experiência produzir um texto, digamos, crítico sobre a obra de Manoel de Barros. Mas não pretendo mais mexer com isso. Não gosto de escrever crítica. Nem dos livros que gosto.

ser criticado? Como qualquer escritor, presumo, gosto de receber críticas consistentes. Se o cara resolve elogiar ou detonar seu livro, ou elogiar algumas coisas e detonar outras, bem, que demonstre saber o que está fazendo.



Wesley Peres é autor de Água anônima (poesia, Agepel, 2002), Rio revoando (poesia, USP/Com-Arte, 2003), Palimpsestos (poesia, Editora da UFG, 2007), Casa entre vértebras (romance, Record, 2007) e As pequenas mortes (romance, Rocco, 2013).