Logo no início de Moby Dick, Ismael revela-nos a sua misteriosa
relação com o mar. O relacionamento do protagonista com o reino de Netuno é
anímico, a ponto de ele ter de submeter-se, de tempos em tempos, aos benefícios
psico-fisiológicos que tal encontro lhe proporciona. É a minha maneira de
dispersar o spleen e de regular a circulação, diz-nos o herói de
Melville.
Assim, sempre que Ismael é acometido de amargura e angústia pelo fato de
ficar por longo período convivendo com as mazelas a que estão expostos ele e
seus pares em terra firme, julga que é hora de enfunar as velas e lançar-se às
vagas intermitentes e inconstantes que o mar oferece.
Mas que sentimentos inspiram Ismael a esse arrebatamento aventureiro
pelo abissal oceano?
É do alto de uma torre de marfim, onde habitam corajosos navegadores, ao
lado de quem ele também julga estar, é que Ismael brada seu elogio do mar.
Distinguindo-se dos demais habitantes da cidade que, embora admirem a
imensidão, ora azul, ora verde das águas do oceano, não ousam nelas navegar, o
protagonista da obra maior do escritor norte-americano, provoca-os desde sua
variável coragem, Plantados como sentinelas silenciosas por toda a cidade,
milhares e milhares de mortais permanecem imóveis, perdidos em meditações sobre
o mar.
Ismael avalia que pessoas como essas, as que vivem na terra e só
conseguem apreciar a grandeza e a beleza do mar a distância, estão aprisionadas
ao sarrafaçar da existência, a uma realidade demasiado chã, que lhes impede de
vivenciar a vida em seu sentido mais profundo, a saber, o da incerteza e da
insegurança com as quais a terceira margem das águas inquieta e seduz. São
todos homens da terra, durante a semana encerrados entre sarrafos e argamassa;
amarrados a balcões, presos em bancos, enganchados em escritórios. Como se
explica isso? Desapareceram os verdes prados? Que faz aqui essa gente? Assim
se pergunta perplexo, o narrador-personagem de Moby Dick.
O que incomoda o herói melvilliano é que tais pessoas, por mais que se
sintam atraídas pelo mar, a ele não se lançam, ficando sempre na margem da
possibilidade de enfrentá-lo, pois, para elas, a fronteira entre a terra e a
água não é um portal, mas uma muralha transparente. O desejo de transpô-la
limita-se apenas a por os pés na parte aquosa e salgada da terra, para logo
após de lá retirá-los e palmilhar em solo firme, caminhando em direção a um
porto seguro. Aí vêm mais multidões, dirigindo-se para a água e
aparentemente procurando a oportunidade de um mergulho! Estranho! Nada os
satisfaria tanto como lançar-se ao extremo limite da terra. Vagar a sombra dos
armazéns vizinhos do porto não é bastante. Precisam aproximar-se da água o mais
possível sem cair nela.
Ismael avalia que, embora as pessoas da cidade não saibam, o sentimento
delas adivinha, o temor do mar, que esbate com o desejo de desbravá-lo, tem a
ver com o mistério e o perigo que nele estão consubstanciados, pois navegá-lo
implica, necessariamente, nele perder-se, nele, desde o encontro do mastro com
o horizonte, reconhecer-se como dissoluto, Por que motivo na vossa primeira
viagem por mar sentistes essa mística vibração, quando vos disseram que tanto o
navio como vós já vos acháveis fora do alcance da vista?
Eis o background que se desvela da relação de Ismael com o mar, a
partir da qual justifica os benefícios psico-fisiológicos que ele usufrui, o
plano metafísico, Por que é que os antigos persas consideravam o mar como
sagrado? Por que razão lhe atribuíram os gregos um deus especial, o próprio
irmão de Júpiter? Seguramente, tudo isso tem um sentido.
Mais que um sentido, Ismael, numa afirmação mais contundente, dirá que
no mar está está a chave que abre todos os mistérios do mundo, pois,
navegando-o, podemos dar com a imagem do inacessível fantasma da vida.
Para a possibilidade de aceder a tal encontro, segundo Ismael, é necessário
abrir mão da inútil segurança de se lançar ao mar na cômoda e passiva condição
de passageiro. Para ele, é necessário atirar-se ao desbravamento do mar, desde
a ativa e incômoda condição de marinheiro.
MELVILLE, Herman. Moby
Dick. [Trad. Berenice Xavier]. São Paulo:
Publifolha, 1998.
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