quinta-feira, 24 de outubro de 2013

A propósito do otimismo & pessimismo & realismo




As polêmicas são inúteis, estar de antemão de um lado ou do outro é um erro, sobretudo se ouvirmos a conversa como uma polêmica, se a virmos como um jogo em que alguém ganha e alguém perde. O diálogo tem que ser uma pesquisa e pouco importa que a verdade saia da boca de um ou da de outro. Tratei de pensar, ao conversar, que é indiferente que eu tenha razão ou que tenha razão o senhor; o importante é chegar a uma conclusão, e de que lado da mesa vem isso, ou de que boca, ou de que rosto, ou a partir de que nome, é o de menos.
 Jorge Luis Borges

Buscando ater-me à lição sugerida por esta bela e exata epígrafe, retirada de um diálogo entretido por Borges e Osvaldo Ferrari, outro escritor argentino, gostaria de problematizar a tríade otimismo/pessimismo/realismo.
Em Grande Sertão: Veredas é possível verificar duas visões de mundo curiosas: a de Riobaldo, traduzida por seu indefectível bordão: “Viver é muito perigoso”; e a de Diadorim, mediante a sua emblemática exortação: “Carece de ter coragem”.
Tais frases, obsessivamente repetidas ao longo da obra maior do escritor mineiro Guimarães Rosa, traduzem-se, de forma adensada, em duas atitudes possíveis de o ser humano encarar sua existência no mundo: de maneira antitética, ou seja, tendo o mundo como adversário, o que implica a assunção de certo heroísmo, certo pôr-se em armas para o enfrentamento da difícil tarefa de viver. Ou de maneira sintética: não tomando o mundo como inimigo, mas como uma condição inescapável, inelutável, de cujo necessário encontro resultam alegrias e/ou tristezas, a felicidade e/ou a miséria.
Pergunto-me: quem é o pessimista e o otimista: Riobaldo com seu “viver é perigoso” ou Diadorim com seu “carece de ter coragem”?
Inegavelmente, a atitude belicista de Riobaldo implica num constante, necessário, porém cansativo, exercício de certa hermenêutica da suspeita sobre o mundo. Em outras palavras, a atitude riobaldiana em relação à mundanidade é sempre crítica, desconfiada, iconoclasta, conforme orientam os grandes mestres dessa linhagem: Nietzsche, Freud e Marx.
Já Diadorim é adepta de certa hermenêutica da afirmação ou do acolhimento. Ou seja, do desarmar-se diante da equivocidade de como a existência mundana se nos apresenta, para que ouçamos o que ela tem a nos dizer e, dessa forma, aquiescer em sua inexata compreensão. Para tanto, ao invés de tão somente ficarmos abrigados em indevassável (e inútil) fortaleza a lançar dardos sobre os perigos do mundo, exercitar também a coragem de ir ao seu (des) encontro, transbordante, trágico, imponderável.
Otimismo e pessimismo, a meu ver, não são os outros da realidade ou do realismo. Ser otimista ou ser pessimista são modos de encarar determinada realidade ou realismo. Ambos, o otimista e o pessimista têm uma visão realista do mundo, a diferença está na maneira como cada um deles encara a realidade ou o realismo do mundo: sendo otimista ou pessimista e colhendo os sabores e os dissabores daí decorrentes.

domingo, 13 de outubro de 2013

O sonho acabou



“Os sonhos, quando muito, inflam nosso espírito qual róseo balãozinho de aniversário, que, cedo demais estoura, ou, tarde demais, se esvazia”. Postei isso recentemente no Facebook. Comentei depois com o meu amigo Alisson Azevedo que ninguém havia “curtido” a minha postagem. Ele disse que obviamente ninguém iria “curtir” uma frase com esse teor desesperançado, sobretudo, quando ainda se está degustando saborosas rabanadas que sobraram da ceia de natal, enquanto se faz planos para a virada do ano novo, tempo de renovação de sonhos e de reativação de ideais, e não de tentativas de demonstração de fragilidades oníricas, sustentadas por sutis flanares de asas da borboleta.
No dia seguinte, recebi um telefonema do Alisson me desafiando: “Encontrei uma canção pra você!”. Ele estava fazendo remissão a uma proposta antiga que fizemos um ao outro, de escrever textos que seriam breves interpretações de letras de canções da MPB, projeto este constantemente adiado, em razão de outros, poéticos ou prosaicos, que nos consumiram (e ainda consomem).
“‘O sonho acabou’, do Gil, lembra?”, “Claro que sim, Alisson!, Mas, assim, na lata?”, “Sim, vamos aproveitar as férias e delegar essa tarefa para nós, como se fosse uma tarefa partidária, rs, essa vai ser a sua música e você precisa dizer qual vai ser a minha”. Despedimo-nos e fiquei tentando me lembrar da letra de “O sonho acabou”... “O sonho acabou, quem não dormiu de sleeping bag nem sequer sonhou...”, nada mais retive na memória.
Minutos depois, liguei para o Alisson e lhe disse: “Já que você me delegou uma tarefa tão difícil como essa, eis a sua canção: “‘Beatriz’. Se vira, meu irmão! Rs”. Ele riu e repudiou a minha sede de vingança.
Nunca dormi de sleeping bag, embora, a despeito disso, também tenha sonhado, e muito, e continuo sonhando.
Obviamente, o narrador (vou chamá-lo assim em razão de minha predileção pela prosa, ao contrário da do Alisson, tenaz poeta) de “O sonho acabou” está se referindo a uma determinada época em que eles e seus contemporâneos viveram com intensidade, provavelmente os irreverentes anos 1960, dormindo em sleeping bag, numa atitude hippie de simplesmente estar habitando um mundo sem fronteiras, e cuja família eram todos os amigos que fizessem pelo caminho, no road movie que era a vida de cada um deles.
Em outras palavras, tratava-se de uma atitude de negação ao modus vivendi do mundo em que ele se situava, impositor de um conformismo reificante, quase sempre por meios e métodos controladores e violentos.
Não raro tal negação se convertia na busca por evasão de tal realidade acachapante, como se pode inferir da menção de certo vilão em “O sonho acabou / desmanchando a trama do doutor Silvana”.
Dr. Silvana, um personagem de HQ, dos anos 1940, considerado um dos homens mais inteligentes do planeta, desiludido com a morte de sua esposa, julgou que a Terra não é mais um planeta digno de se viver, constrói uma espaçonave e passar a habitar o planeta Vênus, um pouco antes de a Primeira Guerra Mundial se iniciar.
Além dos gestos, como esses, negativos e evasivos, é possível identificar a tentativa do ato heroico por parte do narrador e de seus pares, no verso “O sonho acabou desmanchando.../ A transa do doutor Fantástico”. “Doutor Fantástico”, um filme de 1964, dirigido por Stanley Kubrick, que ironizava a Guerra Fria vivida à época.
O narrador também revela, para além da perda da fé no ser humano, a própria perda da fé transcendente, negando, portanto, qualquer possibilidade de redenção e salvação demiúrgica, conforme os heréticos versos sugerem: “O sonho acabou / Dissolvendo a pílula de vida do doutor Ross / Na barriga de Maria” e “O sonho acabou transformando / o sangue do cordeiro em água”.
A dissolução da possibilidade de cura para todos os males que a pílula de vida do doutor Ross deveria assegurar, desde o ventre de Maria, trará sim à luz um homem, aquele que deveria ser o caminho, a verdade e a vida, porém, como a vida, enquanto cura, foi dissolvida na barriga de sua mãe, ele virá ao mundo sem o poder do milagre para ofertá-lo aos homens, em forma de libertação e de toda sorte de prodígios.
Da mesma forma, o sonho acabado, ao transformar o sangue do cordeiro
em água, eliminou a possibilidade de redenção e salvação humanas, que só o seu derramamento na cruz do calvário poderia assegurar.
Não há como negar que o narrador canta “O sonho acabou” como um desalento de como a vida se lhe apresenta contemporaneamente. O sonho, portanto, não é uma predição, como se dá no sonhar acordado, nem uma visão disforme do porvir, como se dispõe numa profecia, mas transformou-se em lembrança, uma boa lembrança e, nesse sentido, não atua mais nos baixios do inconsciente e nem busca galgar os altos píncaros do desejo, mas está recolhido nas estantes da memória, fazendo com que o narrador, aparentemente, esteja deitado para sempre no colchão do imobilismo.
Mas isso não é totalmente verdadeiro, pois ele diz que “O sonho acabou... / Derretendo a minha mágoa / Derrubando a minha cama”. Sem dúvida, ele se soerguerá, buscará avidamente pelo poder restaurador de seu “melaço de cana” e continuará a continuar, ainda que inutilmente.

domingo, 6 de outubro de 2013

Das navegações





para tatianna amaral
levantamos mais cedo, minha filha tatianna e eu. tomamos café na sala, enquanto assistíamos a um show da zizi possi no canal brasil.
a tata lembrou-se de que quando tinha seis anos de idade, foi apresentada a zizi por meu irmão, paulo. tratava-se de uma coletânea de canções, das quais ela aprendera a cantar, em especial, papel marché.
falou-me depois que a zizi meio que enveredou por caminhos não muito elegantes da música, capitulando diante das exigências do mercado.
foi quando a zizi cantou eu velejava em você, parte integrante da tal coletânea.
silenciamos.
não sei as razões do silenciar da tata, mas o meu foi provocado pelo conjunto melodia & letra, a despeito da qualidade da canção, e que me levaram a um tímido e disfarçado lacrimejar de olhos.
era uma canção que falava de amor, esse tema tão antigo quanto inesgotável. a mulher que canta pela voz de zizi diz, eu velejava em você / não finja! / como coisa que não me vê / e foge de mim... pra variar, trata-se de um relato do fim de uma relação que, enquanto durou e quanto pode resistir a si mesma, parece ter sido bem sucedida. daí o desejo de rememorá-la, mais que rememorá-la, de revivê-la, como clama a voz lá pelos meados da canção, minha alma cansada / não faz cerimônia / você pode entrar sem bater.
o verso eu velejava em você, um forma incomum de dizer o que ela sentia quando o amor era a pauta na relação a dois, não faz esforço nenhum em esconder a dimensão sensual em que tal amor também se espraiava. embora revele também que em tal relação, ela bem sabia, ou descobriu tarde demais, não cabia o mergulho com o aparato da ingenuidade, pois tal navegação deve prescindir, necessariamente, da tonta disponibilidade dos incautos. é sobre o mar, pois, que se navega, a sempre ingarantida terceira margem que só o território impermanente das águas pode oferecer.
e o que havia quando a coisa era? melhor, que era a coisa quando havia? era o ter e o não ter, o ser e o não ser, essa ilusão a que a paixão nos lança, fazendo com que corpo e alma se amalgamem de tal maneira, se confundam com tal avidez, a ponto de tomarmos uma substância pela outra, como se fossem a mesma coisa... e só tardiamente descobrimos que não são, que não eram, que nunca serão. conclusão a que ela chega, aliás, bem antes do fim, a boca tremia/os olhos ardiam / oh! doce agonia / oh! dor de viver / de ver sua imagem / que eu nunca via.
mas eis que, inevitavelmente, a relação, pelas razões mais diversas, sobretudo as irracionais, chega ao fim. ao que parece o seu par assim determinou o epílogo sem o ponto final. como o texto ficou ainda aberto para uma das partes, restou a ela escrever os próximos capítulos, porém, agora, sem o auxílio de uma outra mão sobre a sua, a rabiscar páginas em branco de bocas molhadas, de olhares assanhados, de convites para se perder. não, não mais. aliás, nunca saberemos, a canção termina antes que isso aconteça, restando apenas as improváveis conjeturas.
pasma consigo mesma, ela percebe que continua com as mãos vazias, pois aquilo que ela julgava que possuía, na realidade, nunca de fato pode reter nem por força, nem com delicadeza. descobre, por fim, que a matéria de coisas como amor provém da mesma substância intangível com a qual é produzida a ilusão, alterando-se apenas na composição de seus significantes e na profusão de seus significados. ambos, porém, estão condenados à mesma perplexidade, a do cego que, por um milagroso instante, divisa o que é do que não é, assim como ela, laconicamente, conclui a canção, mas, foi como sempre, um sonho / tão longe, risonho / sinto falta, / queria lhe ver...